AGOSTO

Outono
Agosto
  1. A HISTÓRIA

Agosto é um romance em que Rubem Fonseca brilhantemente faz a fusão entre ficção e história real de um período conturbado e tumultuado da História do Brasil.

A narrativa da obra inicia na madrugada do dia 1o  de agosto de 1954, com o assassinato do empresário Paulo Gomes Aguiar, atinge o clímax no dia 24 do mesmo mês, quando o Presidente Getúlio Vargas comete suicídio e termina no dia 26 com a cidade e o país voltando à normalidade.

O autor faz uma minuciosa pesquisa histórica e produz um livro eletrizante onde se pode ver a vida, as dificuldades, as intrigas políticas, os interesses econômicos, políticos e pessoais que unem bicheiros, brigadeiros, prostitutas, policiais, golpistas, pistoleiros de aluguel, autoridades e políticos corrompidos.

Tudo se complica quando, no dia 1o de agosto, é assassinado o industrial Paulo Gomes Aguiar e o Presidente Getúlio Vargas é acusado de ser conivente com  assassinatos e tolerar a impunidade.

O jornalista Carlos Lacerda, Diretor da Tribuna da Imprensa, sofre um atentado, acusa o Presidente Getúlio Vargas de ser o mandante do crime. Denuncia a impunidade reinante em seu governo, lança uma campanha pedindo a renúncia ou destituição do presidente. É integrante da UDN, partido de oposição e candidato a deputado nas próximas eleições.

A partir deste ponto, o comissário de polícia Alberto Mattos, o único policial que não recebia propina dos bicheiros, faz uma investigação detalhada, persegue suspeitas, esgota todas as possibilidades, segue as pistas obsessivamente.

Surge, então, o mundo do jogo do  bicho onde os bicheiros estabelecem seus domínios, lutam pela divisão do território, o controle dos pontos de venda geram conflitos. A propina paga a políticos e policiais para não aplicarem a lei é uma realidade.

Mostra, o autor, a situação dos policiais que não possuem isenção e liberdade para desempenharem suas funções, aplicar a lei, prender e punir criminosos ou transgressores da lei, porque estão comprometidos e acuados.

Dá uma visão da realidade política da época, onde os partidos políticos (UDN, PTB e PSD) da oposição e situação estão em confronto. A UDN ( partido de Carlos Lacerda), partido da oposição, lança uma campanha aberta, defendendo a deposição ou renúncia de Getúlio Vargas por estar acobertando e tolerando a impunidade.

Já o PTB, partido que apoiava o Presidente, mesmo vendo que a situação está difícil, que o povo está insatisfeito, que a popularidade caiu muito, procura uma saída honrosa para Getúlio, propondo um licenciamento.

As forças armadas ( exército, marinha e aeronáutica) defendem abertamente o afastamento do Presidente.

Após muitas reuniões com militares, ministros e familiares decidem pelo afastamento de Getúlio. O inesperado, porém, surpreende a todos: o Presidente suicida-se em seu quarto no dia 24 de agosto de l954 com um tiro no peito.

  1. A NARRATIVA

O autor, narrador heterodiegético, onisciente, narra na 3a pessoa a história-ficção, ou seja, um fato histórico da História do Brasil. Articula uma experiência linear do tempo. Através de um enredo marca as ações, os fatos que desencadeiam acontecimentos históricos brasileiros e o suicídio (talvez assassinato) de Getúlio Vargas no dia 24 de agosto de l954.

O narrador descreve, faz um retrato do Brasil de agosto de l954 em que aparecem o jogo, os interesses políticos e econômicos que determinam rumos e ações. As relações nada amistosas entre os diversos partidos políticos preocupam civis e militares. As atitudes tomadas pelas pessoas, autoridades, que se viam na eminência de ganhar ou perder o poder, são reveladoras.

O autor conta a história de um ponto de vista diferente, apresenta uma versão diversa daquela veiculada oficialmente através de livros de história e/ou didáticos.

Getúlio é apresentado como um velho desencantado, um homem sem esperanças, sem desejo, sem vontade de lutar; um homem pequeno, frágil, vítima de aleivosias dos inimigos, dos julgamentos ambíguos dos amigos, um fantasma para os filhos; um indivíduo triste, reservado, traído, desgostoso com a covardia dos aliados hipócritas. Um presidente envolvido em corrupção, em dificuldades políticas, interesses econômicos nacionais e internacionais. É apontado como mandante de assassinatos, atentados e tentativa de assassinato de opositores. É apresentado como uma autoridade que tolera a impunidade reinante.

A história oficial apresenta-o como um grande chefe-de-estado, um benfeitor dos menos favorecidos. Aquele que possibilitou e assegurou garantias e avanços sociais ao povo; ao país assegurou um avanço significativo no comércio, indústria e agricultura.

Rubem Fonseca vale-se de fatos históricos do passado da história do país e, através de ‘‘flashback’’, das lembranças de personagens, faz referências importantes e possibilita um entendimento da história atual (agosto de 1954).

A Ação Integralista de 1938, segundo o doutor Ramos:

‘‘O pai de Lomagno era um integralista conhecido que financiou a Ação Integralista Brasileira até  1938, quando os galinhas verdes armaram aquele putsch que fracassou. Então o Lomagno velho pulou fora aderindo ao Getúlio, o carrasco do seu partido. O filho nunca quis saber dos anauês dos verdes, mas também é verdade que ele era muito criança quando o Plinio Salgado dava as cartas’’. (Agosto, p. 79 )

O senador Vitor Freitas, referindo-se ao brigadeiro Eduardo Gomes:

‘‘O brigadeiro fora candidato à presidência da República, pela UDN, em 1946 e em 1950. Na primeira eleição, perdera para o general Gaspar Dutra, que fora ministro da Guerra durante a ditadura. Na Segunda, para o próprio Vargas, uma vitória inesperada do ex-ditador, que se vingava assim de um dos militares que haviam liderado o movimento que o depusera em 1945.’’ ( Agosto, p. 85 )

O coronel José Vaz da Silva quando pediu a união das Forças Armadas:

‘‘O dia 29 de outubro marcava a data em que Vargas fora obrigado a renunciar, em 1945, num golpe militar comandado pelo então ministro da Guerra, general Góes Monteiro’’.  (  Agosto, p. 160 )

O comissário de polícia Alberto Mattos, recordando sua participação do ‘‘Queremismo’’:

‘‘Pressionado pelos militares, em 45, o Getúlio que teve que marcar eleições para a Presidência da República e lançou a candidatura do seu ministro da Guerra, o Gaspar  Dutra. Mas ao mesmo tempo organizou um movimento para manter-se no poder, cuja palavra de ord4em era ‘‘Queremos Getúlio’’, que defendia a reunião de uma Assembléia Constituinte com Getúlio no poder.’’  (Agosto, p. 312- 313 )

O senador Freitas analisando a campanha de desmoralização de Vargas organizada pela Igreja e setores das Forças Armadas.

‘‘ Em janeiro de l920, segundo os jornais, Getúlio Vargas, com seu cúmplice Soriano Serra, teria assassinado o cacique Tibúrcio Fongue, da tribo dos inhacorá.  Em 1923, Vargas, ainda com a cumplicidade de Soriano Serra, teria assassinado o engenheiro Ildefonso Soares pinto, secretário de   Obras Públicas do então governador Borges de Medeiros.’’  (Agosto, p. 153 )

O autor transforma-se em narrador extradiegético quando algumas personagens expressam seus sentimentos e pensamentos através de monólogo interior.

O monólogo interior é narrado na 3a pessoa.

‘‘ O que estava acontecendo não lhe interessava nem o comovia. Todos os políticos eram corruptos e aqueles que não eram não eram ladrões, se é que existiam, eram mentirosos. E os imbecis que saíam às ruas para dar vivas aos políticos mereciam aquilo mesmo, porrada nos cornos.’’  (  Agosto, p. l82 )

‘‘Ele já se arrependera por ter deixado de matar alguém. Por ter matado, aquela era a primeira vez. Fora um erro liquidar o Turco velho. Turco Velho era um pistoleiro carro, que costumava servir políticos, fazendeiros e outras pessoas de recursos financeiros. Agora era impossível saber que o havia empreitado para assassinar Mattos. ’’ ( Agosto, p. 197 )

Faz uma reconstrução ficcional do passado porque a realidade original não existe. Na refiguração do tempo a narrativa histórica e a narrativa ficcional se interpenetram, no entanto, não se confundem.

  1. A META-HISTÓRIA

O autor leva o leitor a fazer uma reflexão sobre a História do Brasil. Orienta para uma releitura, para uma nova direção e nova versão para que pense de forma diferente, uma vez que a história oficial não fornece, não conta os bastidores das decisões políticas.

 

Usa a meta-história. Concebe a história como discurso, elabora um conceito de História através da personagem Alzira, filha de Getúlio Vargas.

‘‘. . . ela tomava consciência da História como uma estúpida sucessão de acontecimentos aleatórios, um enredo inepto e incompreensível de falsidades, inferências fictícias, ilusões, povoado de fantasmas.’’  ( Agosto, p. 304 )

Recorre a conceitos de outras áreas do conhecimento humano para melhorar o entendimento da história.

O comissário Mattos vale-se do conceito de lógica para orientar suas investigações, para desvendar os crimes.

‘‘ . . . havia uma lógica adequada à criminologia . . .  Na sua lógica, o conhecimento da verdade e a apreensão da realidade só podiam ser alcançados duvidando-se da própria lógica e até mesmo da realidade. ’’  (Agosto, p. 109 )

A máxima de Diderot, da filosofia, ajudava-no a interpretar as pistas e suspeitas que tinha.

‘‘ . . . que gostava de repetir a máxima de Diderot de que o ceticismo era o primeiro passo em direção à verdade, estava agora cheio de certezas?’’ (Agosto, p. 189 )

Conceitos e conhecimento de psicologia e psiquiatria são usados pelo médico de Alice para explicar psicose-maníaco-depressiva.

‘‘ Quando está na fase maníaca ela tem uma necessidade irreprimível de movimento, É irônica, mordaz  mesmo. Têm idéias delirantes, com associações muito rápidas .’’

‘‘ A psicose  maníaco-depressiva é curável, mas nem todos os pacientes têm a mesma resposta positiva,’’

‘‘Digamos que tem ilusões, nos momentos mais agudos dos surtos. Alucinação é a percepção sem objeto. Ilusão, a percepção deformada do objeto.’’

‘‘Algumas concepções persecutórias, transitórias e epifenomênicas.’’ (Agosto, p. 190 )

POLIFONIA

Segundo definição de teóricos, polifonia é a simultaneidade de várias vozes que se desenvolvem independentemente dentro da obra sem interferir na unidade da  história.

A polifonia está presente na obra porque o autor dá voz às personagens principais, ou seja, elas apresentam uma concepção de mundo, suas idéias expressam a autoconsciência , a ideologia veiculada serve para explicar e entender alguns fatos e conhecimentos da História do Brasil.

A obra é polifônica porque as idéias, as concepções de mundo das personagens, suas atitudes é que definiram os rumos, os acontecimentos narrados na história.

O comissário  Alberto Mattos, único integrante da polícia que não recebia propina dos bicheiros, faz uma retrospectiva de sua vida, faz uma análise de sua vida atual.

‘‘ Os policiais saíram e Mattos ficou pensando no que faria um sujeito ser da polícia. No seu caso fora simplesmente a incapacidade de arranjar um emprego melhor. Depois de três anos advogando para criminosos pobres, sem ganhar dinheiro para pagar o aluguel do escritório, sem dinheiro para casar, . . . ’’  (Agosto, p. 209 )

‘‘ Não sou um homem culto como o senhor, mas por favor me diga: o número dos criminosos não é cada vez maior? No mundo inteiro? Qual a razão disso, me esclareça por favor?  Presos demais ou de menos, nas cadeias?  (Agosto, p. 204 )

O presidente Getúlio Vargas quando faz uma análise de sua trajetória política, quando se depara com dificuldades, com o desgaste de sua imagem de grande estadista, com as campanhas exigindo o seu afastamento, a sua renúncia.

‘‘ Vargas se sentia extenuado. Desde o princípio ele não esperava um apoio sólido para lutar; conhecia a natureza humana, participara, em sua carreira política, de conchavos, revoltas, comborças, golpes, revoluções. Assim, os rostos cautelosos da maioria dos ministros, e as palavras evasivas deles, envoltas em metáforas abdicatórias . . . não lhe haviam causado surpresa, apenas aumentaram seu cansaço.’’ ( Agosto, p. 319-320 )

‘‘Lembrou-se novamente do sofrimento que vira no rosto de sua filha, pensou em sua própria recusa à luta. Pensou na morte. Começou a chorar.’’ ( Agosto, p. 323 )

‘‘ Deitado na cama. Com os olhos abertos sem ver, Vargas imaginou como sua morte seria recebida pelos seus inimigos. Sua carta, que fora escrita para se despedir do governo e não da vida, rascunhada dias antes a seu pedido por Maciel Filho, seu amigo e auxiliar desde os anos 30, podia servir também, e até melhor, para um adeus definitivo.   Faria o que tinha que ser feito. Desafronta e redenção. Uma sensação eufórica de orgulho e dignidade  tomou conta dele.’’ (Agosto, p. 325 )

Alzira, a filha de Getúlio, que tinha grande respeito e admiração pelo pai, que ficou ao seu lado até os últimos instantes, sugerindo lutar sempre, não aceitando o afastamento ou a renúncia sem resistência.

‘‘Alzira pensara que a História redimira seu pai em 1950. Agora naquele aflitivo agosto de l954, em que pela primeira vez via o pai como um velho desencantado, um homem sem esperança, sem desejo, sem vontade de lutar; um homem pequeno, frágil, doente, vítima das aleivosias torpes dos inimigos, dos julgamentos ambíguos dos amigos; agora, ela tomava consciência da História como uma estúpida sucessão de acontecimentos aleatórios, um enredo inepto e incompreensível de falsidades, inferências fictícias, ilusões, povoado de fantasmas. Ela agora se perguntava, então deixara de existir aquele outro homem cuja memória guardara tantos anos em seu coração? Era ele um outro fantasma, nunca existira? Esse pensamento lhe foi tão doloroso e insuportável que por momentos ela pensou que não resistiria e morreria de dor . . .’’ Agosto. P. 304 )

Nesta obra, também outras personagens têm autoconsciência, expressam sua idéia, sua concepção de mundo: Salete, Pedro Lomagno, .  .  .

  1. CONCLUSÃO

O autor Rubem Fonseca faz um desnudamento de um período da História do Brasil, apresenta dados desconhecidos pelo povo, ocultados pela versão oficial do processo histórico veiculado pelos autores de livros didáticos, por revistas especializadas e livros de História.

Todos os dados, informações e fatos são verossímeis. A obra também é ficção. Cabe a cada leitor a leitura que lhe é possível, porque segundo o jornalista Carlos Lacerda ‘‘Vargas está deposto pelo sangue que fez derramar.’’

Talvez a verdadeira história esteja nos documentos que foram retirados rapidamente do cofre do quarto do presidente Vargas e levados por Lourival Fontes, chefe do Gabinete Civil, até um carro.

Se houve um bilhete escrito por militares e  atribuído a Getúlio, será que a carta foi escrita pelo presidente? O presidente suicidou-se ou foi assassinado?  Esta dúvida ainda permanece.

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1.   BAKTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro:           Forense-Universidade, 1981.

  1. BURKE, Peter (org.)  A escrita da história . São Paulo. Unesp, 1992.

 

  1. FONSECA, Rubem. Agosto: romance. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

 

  1. HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro.      Imago.

1991.

 

  1. RIEDEL, Dirce Côrtes (org.) Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro. Imago

 

6.  WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 1995.

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