A  ILÍADA: UMA SINFONIA

A ILÍADA: UMA SINFONIA
A ILÍADA: UMA SINFONIA

O presente ensaio pretende fazer uma análise de A Ilíada, de Homero, enfocando a polifonia na construção da obra-prima da poesia épica e, para muitos estudiosos, a bíblia da antiga Grécia.

        Segundo definição de teóricos, entre eles Bakhtin, polifonia é a simultaneidade de várias vozes que se desenvolvem independentemente dentro da obra sem interferir na unidade da história.

        Uma obra é polifônica quando as personagens têm voz própria, têm uma ideologia própria, manifestam sua autoconsciência, traçam seu destino, vivem sempre no limite para chegar ao autoconhecimento. Tentam entender e explicar o mundo.

        O autor não conduz a ação. A ação das personagens, suas atitudes, sua concepção de mundo é que definem os rumos, os acontecimentos. O importante não é o que as personagens são no mundo, mas o que o mundo é para as personagens e o que elas são para si mesmas.

        Donaldo Schüler diz que a  sinfonia bakhtiniana dá seus primeiros acordes na obra de Homero, em A Ilíada, pois o narrador dá voz a deuses, deusas, reis, guerreiros e a algumas mulheres.

        A Ilíada é uma sinfonia baseada na multiplicidade de focos. O ‘‘canto’’ das personagens (deuses, deusas, guerreiros, mulheres) é sempre uma tentativa de autoconhecimento, de revelação da verdade, da constante incerteza em que vivem e sua inseparabilidade do indivíduo.  Criam e adoram deuses para explicar suas atitudes, purgar seus pecados; fazem sacrifícios, levam oferendas, rendem culto a eles.

        A obra de Homero em tudo é grandiosa: na amplitude do pensamento, na extensão do poema, na riqueza da descrição dos pormenores.

        A sobriedade nos pormenores e o traço material desenhado, firme, sempre realista; essas e outras qualidades fizeram da Ilíada um dos grandes poemas descritos e analisados por críticos, curiosos, amantes e estudiosos da literatura. Poetas, escritores, pintores e escultores procuram inspiração para suas obras.

        Durante vários séculos, muitos poetas compuseram seus poemas imitando ou tentando imitar Homero, A Ilíada.

        Na religião deixou traços marcantes, tornando célebres e sempre lembrados os mitos, os deuses descritos no poema.

        A Ilíada tem por assunto a narrativa dos combates travados diante de Tróia, pelos gregos. Combates que a ira de Aquiles, ofendido por Agamenon (que lhe tira uma mulher),  provoca e que só tem fim com a morte de Heitor. A imolação de Pátroclo, amigo e confidente de Aquiles, às mãos de Heitor e o conseqüente combate destes dois heróis, com a vitória decisiva de Aquiles; as honras fúnebres que o velho Príamo rende ao cadáver do filho, cuja entrega vai implorar ao seu vencedor; por outro lado, os prudentes conselhos de Nestor, o mais idoso dos príncipes que assistiram ao cerco de Tróia; as desventuras de Hécuba, mulher de Príamo, a quem é infligida a dor de ver morrer o marido e quase todos os filhos, e, finalmente, as virtudes conjugais e a resignação de Andrômaca, mulher de Heitor, são descrições e quadros belíssimos do poema, cuja intensidade de colorido e realismo de observação ninguém, ainda, levou mais longe.

        O autor dá voz às mulheres através de Tétis, Hécuba, Andrômaca e Helena, que expressam e confessam o sofrimento e a humilhação impostos às mulheres,  que são entregues como escravas aos seus senhores; destinadas para satisfazer seus donos e gerar homens fortes e guerreiros para a pátria e, assim, fortalecer e perpetuar o instinto vingador, o comportamento bélico dos gregos guerreiros.

 

       Apesar de algumas mulheres receberem voz, não apresentam uma leitura crítica da realidade delas. Apenas confirmam a ideologia vigente, reforçando-a. Conhecem e se submetem às idéias, assumem a condição feminina como algo inferior, como escravas. Aceitam trocar de dono quando são disputadas em lutas ou combates. São o símbolo da vitória usado pelos homens.

        Helena é conhecida e acusada de ser a causadora da guerra e da destruição de Tróia, apesar de Príamo dizer que os deuses são os culpados.

 ‘‘ .  .  . (pois, aos meus olhos, não és tu que mereces censura, e sim os deuses, que me trouxeram esta lamentável guerra contra os aqueus).  .  .’’ ( A Ilíada, p. 36)

        Durante uma discussão entre Alexandre e Heitor, a própria Helena reconhece e confessa que é a causadora de tanta luta, toda a guerra, tanta destruição. Ela não consegue ver caminhos para uma solução pacífica, pois a ideologia reinante atribuía à mulher a inferioridade, a  responsabilidade de ser submissa, de se sujeitar a tudo que fosse determinado pelos deuses e pelos homens.

 ‘‘Meu irmão, horrível, maldosa víbora que sou, oxalá o dia em que minha mãe me teve a ventania da tempestade me tivesse arrastado para a montanha ou para a margem do ressonante mar . . .’’ (A Ilíada, p.70)                       

 

       Em suas lamentações, Helena confessa que muitas humilhações sofreu no palácio, mas apenas Heitor a apoiou e protegeu quando todos a acusavam. Tem consciência de que provoca vergonha em seus irmãos.

‘‘Eis que faz vinte anos que aqui estou e deixei minha pátria. Jamais, porém, até este dia, ouvi de ti uma palavra áspera ou desdenhosa. Ainda que, em nossos palácios eu tenha ouvido palavras ásperas de qualquer um de teus irmãos ou de tuas irmãs ( meu sogro sempre foi   gentil para comigo, como um pai), tu os continhas e apaziguavas com tuas palavras . . . Choro tanto por ti como por mim, desventurada.’’ (A Ilíada, p. 274)

‘‘. . . ou se vieram nos navios que cortam o mar, mas agora não estão dispostos a participar da batalha de heróis, temendo a desgraça, porque eu os envergonho.’’ ( A Ilíada, p. 37)                                  

     Hécuba é o retrato da mulher que sofre todas as desventuras, a quem é infligida a dor de ver morrer o marido e quase todos os filhos.

  ‘‘Meu filho. . . eras o meu orgulho na cidade, a proteção dos troianos e troianas.’’ (A Ilíada, p. 245)

 ‘‘Heitor, o mais querido no coração de todos os meus filhos, em vida foste amado dos deuses e eles te olharam mesmo depois da morte. Eis que Aquiles costumava vender meus outros filhos, a quem os comprasse . . .’’ ( A Ilíada, p. 274)

        Andrômaca retrata a resignação das mulheres da época. São salientadas as virtudes conjugais e a resignação diante da realidade e do destino traçado para elas.

 ‘‘Preferia, se perder-te, perder a vida. Não terei mais prazer quando tiveres sido vítima do destino, mas apenas pesar.’’ (A Ilíada, p.71)

‘‘E tu, criança, ou me seguirás aonde eu tiver de executar trabalhos indecorosos, submetida a algum senhor implacável . . .  Heitor, trouxeste inexprimível dor e sofrimento a teus pais, mas para mim, mais do que todos, indizível sofrimento foi deixado.  . . ( A Ilíada p.274)

        A deusa Tétis, mãe de Aquiles, chorando diz para que finalidade os filhos são gerados, expressa a dor e o sofrimento das mulheres mães. Ela tem consciência de que não  é a mais honrada entre as deusas.

 ‘‘Oh, meu filho! Por que te concebi para um tão desgraçado destino? Por que não podes ficar ficar, sem lágrimas e livre de pesares, junto aos navios, já que teu destino é curto e não durarás muito tempo?’’ ( A Ilíada, p. 15-16)

‘‘ . . . já que não receias que eu saiba que sou a menos honrada entre todos os deuses.’’ ( A Ilíada, p. 17)

        As personagens masculinas, deuses, fortes e valentes guerreiros, são apresentadas pela obra através das falas onde elas se desnudam, se mostram ao espectador ou ao leitor.

       Aquiles, o dos pés ligeiros, ofendido, reprova o gesto de Agamenon tirar-lhe a mulher que ganhara como prêmio de vitória de uma batalha.

 ‘‘Minhas mãos sustentam os pesados encargos da furiosa guerra, no entanto, quando se faz a divisão dos despojos, tua presa é sempre a maior e eu regresso ao navio com pouca coisa, mas que bem mereço, para retemperar-me das fadigas.

        Nestor, o mais idoso dos príncipes que assistiram ao cerco de Tróia, aconselha prudência aos guerreiros para entrarem em combate.

 ‘‘Desses homens fui companheiro quando vim de Pilos, de uma terra distante, pois eles próprios me convocaram. Lutei emcombate singular: com aquele inimigo nenhum dos mortais que ora se encontra sobre a terra poderia lutar. Eles ouviram os meus conselhos e atendiam à minha palavra.’’ ( A Ilíada, p. 12)

        O guerreiro Heitor sabe que seu destino, depois de tanto sofrimento e tanta luta, será a morte ao dizer: ‘‘os deuses em verdade  chamam-me para a morte; agora a morte sinistra está perto de mim.’’

        A obra  A Ilíada pode receber a denominação de sinfonia, uma vez que em sua forma original é uma poesia, encenada e cantada por diversos atores. E porque o autor dá voz às personagens para expressarem sua consciência, sua tentativa de autoconhecimento.

        O leitor, ou o espectador, fica extasiado diante da grandiosidade da obra, constituída por personagens que expõem a incerteza que invade o ser humano quando se depara  com dificuldades, quando precisa enfrentar perigos, defender a pátria, partir para um guerra, executar uma vingança.

        A Ilíada é um poema épico construído através de um vai e vem, onde os artistas executam seu solo de incerteza, resignação, ódio, ira, sagacidade, vitória, derrota, vingança, através da simultaneidade de vozes das personagens que compõem e executam uma melodia, uma grandiosa e heróica sinfonia, onde o humano e o divino se mesclam, e com que se fecha o texto musical.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense –Universidade, 1981.

 HOMERO. A Ilíada: (em forma de narrativa); tradução e adaptação de Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

 SCHÜLER, Donaldo. Quem é Ulisses?  Signo. Vol 20, n. 28 (Mar. 1995). Santa Cruz  do Sul. Editora da UNISC, 1996.

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